Arquivo das Imagens Não Vistas

2019

Diante de uma imagem – por muito recente ou contemporânea que seja -, também o passado nunca cessa de se reconfigurar, já que esta imagem só se torna pensável numa construção da memória, senão mesmo do assombro. Diante de uma imagem, afinal, temos de reconhecer humildemente o seguinte: é provável que sobreviva à nossa existência, diante dela somos nós o elemento frágil, o elemento passageiro, e diante de nós é ela o elemento do futuro, o elemento da duração. A imagem tem frequentemente mais memória e mais futuro do que o ente que a olha.

Georges Didi-Huberman, in Diante do Tempo: História da Arte e Anacronismo das Imagens, Orfeu Negro, 2017, Lisboa

A ideia para este arquivo foi lançada pelo coletivo Imagerie – Casa de Imagens em 2019 com o objetivo de refletir sobre o território da cidade de Lisboa a partir de imagens de álbuns familiares ou de arquivos fotográficos de habitantes da cidade, analisando o espaço público a partir de imagens da esfera privada. Ao mesmo tempo, porque um arquivo debruçar-se-á sempre sobre a ideia de documento e de passado, tinha também como objetivo ponderar sobre a dinâmica e organicidade da memória enquanto instrumento de construção do passado e da identidade de um grupo de indivíduos. Essa organicidade, própria do objeto deste arquivo, deveria estar patente através de uma organização menos formal, ou habitual, dos seus conteúdos, inspirada nas regras da boa vizinhança da organização da Biblioteca e do Atlas de Aby Warburg, em que cada objeto e o seu posicionamento relativo nunca são a resposta a uma pergunta, mas antes indicam novos caminhos, como hiperligações a serem exploradas criativamente num site-arquivo.
O Arquivo das Imagens Não Vistas foi criado por um grupo de 6 autores numa oficina que se desenvolveu ao longo de 9 meses.
A primeira parte da oficina envolveu a procura de fotografias do álbum ou coleção fotográfica da família de cada um dos participantes, em que se pudessem reconhecer os locais da cidade de Lisboa onde as imagens foram feitas. A partir dessa seleção de imagens, identificaram-se os géneros fotográficos, procuraram-se os locais, refletiu-se sobre as mudanças que os afetaram ao longo do tempo, e identificaram-se informações-satélite que cada uma delas poderia oferecer (a morada do fotógrafo, a câmara com que foi feita, os recados escritos nos versos, etc.), e cada participante gravou em áudio uma descrição de cada uma das imagens do seu arquivo.
Este processo foi desenvolvido de forma livre, permitindo que aquilo que é construção na formação da memória de cada um pudesse ocupar um lugar preponderante na forma como o objeto-arquivo é desenvolvido. Da memória construída, abriu-se a oportunidade à possibilidade de criar ficções mais ou menos deliberadas, que convivessem livremente com as memórias e as descrições mais factuais.

Depois de identificados os lugares, cada participante levou consigo uma câmara estenopeica e tentou, o melhor possível, re-fotografar no mesmo lugar e no mesmo ângulo cada uma das fotografias preexistentes. O facto de as câmaras estenopeicas não terem um visor que permita enquadrar intencionalmente uma imagem, complexifica o exercício de observação do local, tornando-o num exercício de imaginação da imagem a ser impressa no papel, dentro da câmara. Além do mais, a fotografia estenopeica exige um tempo de exposição relativamente longo (de alguns segundos a alguns minutos) e cada participante usou esse mesmo tempo para gravar uma descrição áudio do local que fotografava. A diferença de luminosidade dos lugares, refletida na grande variedade de tempos de exposição, desafiou-os por vezes a um enorme poder de síntese, e por outras a um grande sentido de observação e descrição.
Este arquivo é constituído pelas imagens dos álbuns familiares e respetivas fotografias estenopeicas (pinhole), pelas descrições (em áudio) de ambas, e alguns conteúdos-satélite encontrados nas imagens. As imagens foram todas catalogadas com palavras-chave retiradas exclusivamente das descrições dos seus autores, e que por serem de uma grande variedade foram agregadas taxonomicamente em categorias mais ou menos abstratas – desde a mesma categoria de objetos até a referências temporais, por exemplo. O arquivo pode ser “navegado” visualmente, imagem a imagem, existindo sempre a possibilidade de “saltar” entre a imagem de arquivo e a sua correspondente imagem pinhole e vice-versa; geograficamente, através de um mapa, que dispõe todas as imagens por local e autor, e textualmente, através das palavras-chave e das suas categorias.
Por fim, o objetivo deste projeto foi também explorar as possibilidades de criação de um arquivo que é simultaneamente um objeto artístico, refletindo sobre o território e a sua ocupação, enquanto desafios da cultura contemporânea e explorando temas como a turistificação e a gentrificação, utilizando a fotografia estenopeica como ferramenta que promove uma desaceleração da prática e uma observação propositadamente mais consciente do espaço e do tempo.

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